domingo, 10 de junho de 2018
domingo, 3 de junho de 2018
quarta-feira, 23 de abril de 2014
Estou aqui.
Blogueiro sumido
Blogueiro sumido
Últimas palavras...
preces
Meu pai deixou este
mundo há quase um ano. Deixou o mundo a que veio. Sei onde está sepultado e por
vezes me vêm pensamentos de como esteja, mas tudo o que se tem são os restos
mortais que já se decompõem ao chão.
A vida o foi
deixando aos poucos e mais forte o lançava às cobertas de uma cama profunda,
emudecido e magro entre lençóis brancos sem cor, de réstia de vida agoniante.
Seus olhos perdidos ao ar, inexpressivos, buscavam o que saberia não mais ver,
sem brilho. Olhos de morto, mas as suas mãos agarravam-se às minhas e não
soltava. Eu não sabia se devia ficar ou ir carregado de pensamentos sobre
aquele momento. Se saísse talvez não o visse da próxima visita ou em nenhum
outro momento neste mundo. Estaria lúcido para se despedir? Era uma despedida?
Gostaria de lhe dar todas as certezas sobre a morte, mas não tinha nenhuma, a
não ser que ele iria à mansão dos mortos. Evitava falar ou pensar sobre
cemitérios e caixões.
Tentava o iludir (ou
me iludir) sobre coisas tranquilas como um riacho, sua vida no campo, os
pássaros e sussurrava isso na sua cabeceira. Parecia que me ouvia ou se enchia
do meu papo excessivo também. Nas vezes que conseguia balbuciar respondia,
assentia, e ainda sinto o cheiro dos seus monossílabos nos meus ouvidos. Em
princípio, os cuidados da enfermeira lhe dava um cheiro de neném, contudo o
cheiro de doente é variável, lembro-me desses odores dele e me vai a mente até
os cheiros de pai, familiar e diário. Será que nosso nariz guarda alguma
essência? Lembro-me de nossas conversas, de meus monólogos, porque não podia
responder mesmo (eu sabia e já deixava a resposta embutida). No fim minha
conversa não era mais palavras aprendidas e descobri que as orações antigas
como o pai-nosso e ave-maria não são coisas de beatas atiçadas nas procissões,
são balbucios de nossa alma, de nosso próprio indizível. Hoje, como falo a você
meu pai? Você dorme, repousa. Descanse, velho, nas minhas orações.
Neste dia dezessete
de abril, quinta-feira da paixão, faz um ano de sua morte e tudo mudou, passou;
no mundo, se valessem somente as aparências nada mais existiria, mas não cremos
nisso.
sábado, 8 de setembro de 2012
postando outro texto, O felecido. Participem lendo e comentando se quiserem.
Abç
O blogueiro cronista
O falecido
Era um menino no retrato redondo do túmulo em mármore fechado. Dois
anjos alados vigiavam o morto. Aquilo fazia a todos condoerem-se. Uma criança!
Em alguns túmulos de crianças não embalsamadas tem até a história,
como aconteceu a sua morte, etc. Parei para olhar, já que viera ver o mural do campo
santo, cheio de obras e de renomadas paletas; uma vez lá entrei pelo vão do
muro do cemitério, derrubado para conserto de final de ano. Nunca tive medo de
mortos dos outros, o que temo são os meus, mas todos são levados mais dias ou
menos dias, com os anos que tiverem.
Acho que temo mesmo a minha própria, por quê? Acho que tenho matado
mortos, só para fugir a este momento e eles voltam, ah, se voltam. Nós somos os
mortos, não há momentos a repetir, mas a viver até a última nota do piano ou na
pausa longa da aurora.
Tantos se foram, levados ao campo santo e lá depositados. Não, não
estão lá, lá estão as lápides; mas aquela criança na foto de lápide? Sua
história me pegou desprevenido, um mistério tumular. Somente uma foto antiga e
desbotada com um olhar de algum trauma do passado, do tempo que meninos
apanhavam e sofriam vilanias de tios ou pais, parentes que deixaram o túmulo
sem cuidados, sem inscrição de lápide, em ruínas, agora já descaracterizado,
somente portando a foto do morto.
Informou-me o velho coveiro que aquele túmulo era de uma família
abastada e há quarenta anos, quando a criança foi tumulada, era tudo ouro e
muito ornamentado, mas os ladrões de jazigos os subtraíram. Não havia nenhuma
anotação mais detalhada a não ser a verbal que colhi informalmente. Voltei
várias vezes, ver as obras do mural e passava pelo túmulo. Ao olhar a foto
esmaecida, quase não a via e uma força estranha fazia-me ir lá outras vezes. O
coveiro caminhava por ali como em um jardim e não via nenhum parente velando ou
prestando alguma oração naquele jazido, mas disse-me o coveiro que lá sim ia um
senhor orar. Ora quem era este senhor, deve ser parente e saberia quem era a
família – curiosidade de escritor. Pelas informações do velho o homem tinha
dias e horários certos; bem podia ser alguma novena. Fui também, sabia que o
homem era metódico, britânico. Era assim, sisudo, introspectivo, cenho fechado
mesmo e olhar de nenhum amigo. Abordei-o em meio à oração, ousei. Olhou-me de cima
de seus óculos escuros, distante, além. Ia cutucá-lo sim. Toquei no seu ombro:
- Como vai?
Olhou para mim e, no fundo de seus olhos a criança vi a criança da
foto. Ele disse diante do meu espanto:
- É meu irmão gêmeo, sabe? – e sorriu.
Eu fiz um amigo, mas prefiro conversar para cá
do muro. Ufa!
domingo, 3 de junho de 2012
COMO FOLHA DE COQUEIRO A DESPENCAR
O olhar parou na única folha seca, quase
despencando do alto, próxima ao chão do canteiro da avenida, vinda de um
coqueiro de tronco mais grosso. Glaucia no ponto. Espera o primeiro ônibus. O
último a deixará na esquina de uma das quatro escolas onde trabalha. “É um
trabalho, não um passatempo!”, reflete ela.
Sente-se
cansada, nos seus trinta e nove anos, 16 nesta profissão de docente. Cansada,
não de uma canseira cotidiana e banal, mas de uma canseira acumulada e que
extrapola qualquer entendimento. Apesar disso, notou que as folhas de baixo, as
mais velhas, murcharam e pareciam morrer primeiro, mas nem sempre é assim,
ponderou. Quando chegaria a vez dela? A própria morte não a incomodava, sabia
que iria a qualquer momento, mas estaria pronta para o embarque, sem malas? “Tantas
pessoas já pareciam mortas!”
Em
sua maleta – aquela que vinha “paquerando” na loja, cara, mas bonita e prática,
agora havia livros, diários de classe, 500 avaliações já corrigidas no final de
semana, apagador, biscoito integral, garrafinha d’água, uma banana, os passes
de transporte coletivo, lenços descartáveis para a rinite que a atacara nos
últimos anos. – Consequência dos sapos que você engole! – ouvia sua terapeuta
holística falando precisa pôr pra fora!
Glaucia, há tempos, jogara tudo para
fora. Vamos aos acontecimentos.
“A porta é serventia da casa!” – dissera, na
ocasião, ao aluno Peterson Sidnei quando este a enfrentou com sorriso distraído
e irônico.
– Você não sabe distinguir a democracia
de uma ditadura! – disse ela, gritando – apesar de que, às vezes, nem eu
consigo fazer a distinção! É o poder do povo, da maioria!!! – continuava gritando e olhando fixamente aquele
garoto.
Não suportando mais:
–Vou baixar também o nível. Já baixei – foi em direção a ele, que ria
dela.
Quando ela pôde ver-se não gostou do que viu.
Estava sobre ele, com as mãos no pescoço do adolescente, quase deitado sobre a
mesa da “mestra”. Ela deu-lhe um xeque. Mate. Sim, era ela. Glaucia, que já havia
tentado, noutro ano, outra ideia: passara a seguir um jovem aluno pela sala de
aula, caminhando atrás dele e imitando os seus gestos. Durante quase dez
minutos susteve a farsa, que acabou quando ele, Fagner, sentou-se em sua
cadeira e abaixou a cabeça sobre a carteira. “Achei que o meu teatro servisse para alguma
coisa, oras bolas!” – pensou ela, confusa.
No
ponto de ônibus olha agora em direção ao cacho de coquinhos acima das folhas,
também seco de um marrom cinza. Murchou antes de amadurecer, ainda em floração.
Que estranho, observou ela, o que lhe teria acontecido para pular etapas de
maturação? Teria similitude com aquela adolescente de 17 anos, a medíocre
Carolina Andreza, a viva-morta antes de frutificar? Mas quanto tempo aquele
coqueiro permaneceu florido? Tempo suficiente para acolher abelhas, borboletas,
pássaros, formigas ou lagartas?...
Observa o relógio no pulso, ônibus atrasado de
novo. Coça o queixo como de costume, remexe no bolsinho externo da maleta,
talvez para disfarçar os olhares de estranhos. Um ônibus?! Não era o seu!
Bocejou com os supostos olhares dos passageiros no ônibus que parara e sentiu suas
ansiedades e tensões. Mentalizou luz colorida a eles e fez uma oração, afinal
tinha tempo ainda. Achou melhor sentar-se, porém o banco de cimento gelado
estava quebrado e servia de rampa aos skatistas menos habilidosos, quando o vai
e vem nas calçadas diminuía nos finais de semana.
Na
possibilidade do atraso (ela detestava atrasar-se), já via alguns alunos
dizendo à porta “por que veio hoje, dona?”
“Meu nome é Glaucia, prazer,
queridos!” Sentiu-se indigna e vazia, “nem sabem nosso nome, somos apenas Dona,
não sou dona de nada, só de meus conhecimentos.” Lembrou do outro “botar tudo pra fora”: mandou
um aluno do supletivo procurar um psicólogo e parar de lero-lero. Este se virou
pra frente da sala – até então estava sentado, de costas para ela. Foi chutando
carteira, xingando em sua direção e fazendo-lhe ameaças. Ela não reagiu, os
colegas o seguraram, estava dopado. Ela não percebera, e na próxima semana a
professora iria para casa olhando pra trás a cada dois passos. “Que sufoco, ufa! Mas o ano letivo estava
terminando, ainda bem, refletiu em sua angústia solitária”.
Sua
atenção desviava-se agora ao som das andorinhas, em coro afinado. Pareciam tão
felizes. As folhas verdes do coqueiro balançavam com a brisa daquela manhã,
exceto a que secou; outros coqueiros avizinhavam-se em linha reta, pareciam
também animados com a brisa, mas onde estava o bando de andorinhas? Forçou o
olhar nas vastas folhas, nada! Se não queriam expor-se, tudo bem, um direito do
bando! Concentrou-se a ouvir os seus gorjeios, fascinada.
– Por que tenho de vê-las? As
andorinhas são reais e pronto! Livres! Queria ser igual a elas, não ter de enfrentar
os alunos e entristecer-me novamente, salvo as maravilhosas exceções. E o
ônibus? Na certa quebrara de novo!
– E se eu desse meia volta e fosse
pra casa, era ali tão pertinho, ai, ai, ai... Aí não terei de almoçar na
escola, de marmita, mas... As andorinhas silenciaram-se, para onde foram?
Pegou o batom da bolsa, passou um
pouco nas bochechas, o blush havia acabado. Riu sozinha, disfarçadamente.
Voltaram imagens constrangedoras e bizarras do passado. Um dia, ao ser impedida
por um adolescente que não era aluno de sua
classe de retornar a sua sala de aula onde
desenvolvia um seminário riquíssimo, algo
ocorreu. O aluno, com o braço no batente da porta, conversava com um colega lá
do fundo, ela pediu licença a ele e, sem ser atendida, radicalizou. Sem
raciocinar, usou a única arma que lhe veio à mente: ao ver o braço dele, peludo
e bonito, bem à altura de seu rosto, não pensou duas vezes, tacou-lhe os
dentes, obrigando-o a retirar o braço da porta, num grito. O latão de lixo foi
chutado. Tumulto. Glaucia processou dois alunos por impedirem-na de exercer sua
função e desrespeitarem o seu direito de ir e vir. Pôs no B.O tudo que pôde.
E
ainda, imagens de começo de carreira invadiram suas lembranças. Numa aula
noturna aproximou-se de um jovem que a vinha
incomodando e fazendo ameaças desde o
início do ano
letivo, sentado ao fundo da sala. Era junho, ela apontou o dedo em riste para
ele, sem que os da frente vissem, com um sussurro, discreta, abaixou-se à
frente dele e delicadamente o ameaçou, em blefe:
–
Olha! Eu, se fosse você, a partir de hoje iria embora olhando bem pra trás e
tomaria cuidado com a sua casa. Você não me conhece e tampouco a quem sou
ligada, é um estalo de dedo e já era, sacou, bicho?
Afastou-se sem testemunhas e continuou a aula.
Eduardo Jonathas, branco, arroxeou-se, e as aulas caminharam com destino
diferente a partir daí.
– Tive que apelar, porém, só assim
conseguiria trabalhar. Nessas condições, somente os loucos podem realizar
proezas impossíveis aos normais, concluía.
Finalmente
o transporte chega. Não era o seu, ainda! – É! O ônibus quebrou de novo mesmo. –
Pensava, trêmula, na sala de aula, enquanto lembrava das carteiras novas já com
caras de velhas. Que autoridade? Por que não desafiam o governador, o
secretário ou o raio que o parta? Quem suporta o barulho? A chamada de presença
obrigatória? “um saco!” E pedir, então, por favor, por favor, por favor, a aula
toda para desligarem o celular, a música ou blá blá blá blá no ouvido. Glaucia revive o dia anterior: sentando-se
atordoada – raramente sentava – leva as mãos aos ouvidos, põe o protetor
auricular “ou talvez eu devesse ouvir música também” e diz a si mesma:
– Quero o silêncio daquelas
andorinhas, não quero me transformar no jovem cacho seco do coqueiro, nem no
conformismo da maioria.
Pela lista do diário de classe –
possuía 18 diários – chamou Jimmy, aquele que nunca era visto com os apetrechos
tecnológicos proibidos durante as aulas, só no intervalo, e notando que faltava
há mais de uma semana, indagou:
–
Onde está o Jimmy? Alguém sabe dele?
–
Morreu, Dona. – disse Mônica, a menina de cabelo chapinha, com MP3, e meio
indiferente. E completou: – morreu atravessando a estrada. É, Feio! ce não credita,
pergunte pro Jesus. – disse olhando cinicamente ao colega do lado.
–
É nada, Dona! O trator caiu em cima dele, não sobrô quase nada, é isso aí!
Assustada,
perdida, ainda teve tempo de ouvir uma terceira e quarta opiniões, as de Nádia
e as de Kevin Marcel:
–
Jimmy não veio porque o pai tá preso, desempregado, o irmão foi espancado e ainda
por cima pegou fogo na casa dele. Isso é tudo, professora!
Uma chuvinha miúda recomeça, a
professora se espreme num canto, mas teve de abrir a sombrinha colorida. Adorava
andar com sombrinha quando chuviscava, “é romântico!”. Mais uns oito minutos passam-se,
as preocupações e os temores se fortalecem enquanto encara os ponteiros
caminhando atrevidamente. Abre a maleta, pega o antidepressivo e o calmante,
atira-os à lixeira umedecida pelos pingos. A chuva diminuíra. Agita a sombrinha
rapidamente para as gotas caírem. Fecha-a com delicadeza habitual. Aperta a
maleta na mão esquerda, mantendo a sombrinha na direita, vira-se e sai em
direção a sua casa. “Vou mudar de profissão, plantar coqueiros, quem sabe!”
Meses depois, ao passar pela
Avenida, Glaucia percebe que aquela folha seca quase desprendendo do coqueiro,
em frente ao ponto de ônibus, ainda estava lá, segura, firme, ligada ao tronco
do coqueiro, uma fortaleza.
Divido com vocês o meu conto premiado no XXXVII Conc. de Contos da Associação Nacional de Escritores (ANE) 2012.
Obrigada a vocês, que têm me acompanhado com tanto carinho.
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